Regime Democrático
Delimitação do Conceito de Democracia por Referência aos Regimes Autoritários e Totalitários
«(…) Precisamente pelo seu carácter limitado, o pluralismo político dos regimes autoritários não é de forma alguma assimilável àquele que constitui uma característica constitutiva dos regimes democráticos. O pluralismo democrático será sempre – pelo menos em sede de princípios, mas frequentemente também na prática – ilimitado, concorrencial e responsável. Poderão existir distorções, mas o remédio surgirá habitualmente da própria livre concorrência entre grupos que nascem espontaneamente e se transformam em virtude da responsabilidade para com os seus membros e para com aqueles que pretendem integrar-se neles.
Se os regimes totalitários ostentam ideologias rígidas e os regimes autoritários mentalidades flexíveis, será caso para afirmarmos com vista a uma delimitação exacta, que os regimes democráticos não têm ideologias nem mentalidades. Como veremos (…), esta conclusão, em princípio aceitável, tem de ser explicitada com base nas regras e nos procedimentos, bem como nos ideais e valores dos regimes democráticos. Em suma, entre a ideologia e a mentalidade – ou melhor, para além de ideologias e mentalidades – situam-se combinações complexas de éticas democráticas fundadas nos direitos.
A este propósito, deve-se dizer que o zelo no estabelecimento de definições e classificações deveria ser mais reduzido, ou então melhor orientado. Com efeito, não só existe uma mentalidade democrática feita de tolerância das diversidades e de aceitação da concorrência devidamente regulamentada e dos respectivos resultados, de conflitos e compromissos entre uma pluralidade de intervenientes políticos, mas também existe mesmo uma ideologia democrática. Esta ideologia, que não é imposta do alto e se sujeita às variações desejadas pelos cidadãos e a reformulações contínuas, molda-se em torno dos valores da liberdade, da igualdade, da solidariedade e dos seus equilíbrios em constante mutação […] Para atingir estes valores, para os promover e proteger, os regimes democráticos confiam na participação espontânea dos cidadãos, encorajando-a e favorecendo-a, ou simplesmente tomando-a possível e praticável. (…)
Vagas da democratização
As mais recentes vagas de democratização levaram à construção do maior número de regimes democráticos de todos os tempos. Para além disso, deram origem a regimes democráticos em zonas geográficas e em ambientes culturais até há pouco tempo considerados pouco receptivos, se não hostis, à democracia. (…)
Samuel P. Huntington [1995] na profunda exploração comparada que fez, identificou com grande inteligência três vagas de democratização e duas de refluxo:
No final da primeira vaga de democratização (1828-1926) existiam 29 Estados democráticos, mas depois da primeira vaga de refluxo (1922-1942) o número de democracias limitava-se a 12;
A segunda vaga de democratização (1943-1962) aumentou para 36 o número de Estados democráticos, mas a vaga de refluxo que se lhe seguiu (1958-1975) fez cair seis deles;
Finalmente, a terceira vaga de democratização, iniciada em 1974 e ainda em curso, deu origem ao mais elevado número de Estados democráticos de todos os tempos: 58. Note-se, todavia, que a actual percentagem de Estados democráticos em relação à totalidade dos que existem é sensivelmente idêntica à que se verificava no fim da primeira vaga, ou seja, 45%.
Huntington questiona-se oportunamente sobre as condições que estão na origem de cada uma das três vagas. Segundo ele, a primeira vaga está ligada a um conjunto de condições socio-económicas: industrialização, urbanização, aparecimento da burguesia e da classe média, assim como da classe operária e das suas organizações, redução gradual das desigualdades económicas. A segunda vaga estará relacionada com factores políticos e militares: vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial e início dos processos de descolonização. Para a terceira vaga, Huntington propõe uma explicação muito mais elaborada e diferenciada, que baseia num factor de ordem geral a que dá a designação de «aprendizagem»: vinte e três dos vinte e nove países considerados já tinham tido experiências democráticas anteriores, ainda que de curta duração e / ou marginais. A seguir, identifica cinco alterações responsáveis pela terceira vaga de transições para a democracia, que podem verificar-se isoladamente ou em combinação, a saber:
1) A crise de legitimação dos regimes autoritários;
2) Um crescimento económico sem precedentes;
3) O novo papel da Igreja Católica depois do Concílio Vaticano 11;
4) O impacte da Comunidade Europeia sobre os regimes autoritários da Europa do Sul, o papel das políticas de tutela e promoção dos direitos humanos e a espectacular tentativa de transformação dos regimes comunistas levada a cabo por Gorbatchov;
5) O efeito de contágio (ou efeito dominó.) dos processos de democratização.
Ainda que não se possa dizer que todos os regimes democráticos originados pela terceira vaga se encontram já consolidados, estabilizados, destinados a continuar na via da democracia, existem muitas condições favoráveis que nos fazem pensar que, a existir, a próxima vaga de refluxo será fraca e limitada, ao passo que outros regimes autoritários apresentam já as condições necessárias, se bem que não suficientes, para se tomarem democráticos.
É particularmente interessante observar como Huntington previu – com base nas hipóteses, generalizações e averiguações que fez – uma possível transição da República da África do Sul para a democracia, que acabou por se verificar. Deve-se acrescentar que muitos dos regimes democráticos instaurados durante a terceira vaga se situam no espaço europeu, o que, só por si, parece constituir uma sólida rede de segurança. É provável que alguns dos novos regimes democráticos ainda não estejam consolidados, mas o desafio às democracias actualmente existentes, se não provier do fundamentalismo islâmico, não parece ter bases de legitimação que lhe permitam sequer fazer tremer as democracias mais recentes, por mais frágeis e criticáveis que elas se apresentem. Segundo alguns autores, a fragilidade institucional e a insatisfação quanto à qualidade das democracias mais antigas e, sobretudo, das mais recentes, dependem de factores de natureza socio-económica. Se bem que sem entrar no complicado debate, ainda não resolvido, sobre as relações entre capitalismo e democracia (Que capitalismo? Que democracia?), há pouco referido, parece útil explorar o relacionamento entre certas condições socio-económicas e os regimes democráticos.
Definição
Se bem que não seja aceite por todos os estudiosos, suscitando mesmo, ainda hoje, acesos debates, a definição proposta pelo economista austríaco Joseph Alois Schumpeter reuniu um grande consenso durante os últimos anos, quer pelo seu carácter essencialmente processual, quer porque permite o desenvolvimento de considerações e teorizações mais apuradas e profundas […]. A definição de Schumpeter deve a sua validade ao facto de permitir identificar com precisão os regimes democráticos e aqueles que o não são, mas também avaliar o aumento ou a redução de democraticidade de um regime. Segundo Schumpeter, «o método democrático consiste no arranjo institucional necessário para chegar a decisões políticas no qual algumas pessoas alcançam o poder de decidir através de uma competição destinada a obter o voto popular.» (…)
Num regime democrático, os cidadãos-eleitores podem, portanto, contar com a responsabilização geral dos governantes. E, exactamente devido aos procedimentos eleitorais democráticos, têm a possibilidade de recompensar os que se preocuparam em ser representativos e responsáveis e de substituir aqueles cujas capacidade e prestações não foram satisfatórias por outros em quem acreditam. (…)
O elenco mais pormenorizado dos requisitos essenciais à criação de um regime democrático foi formulado por Dahl (veja-se a Tabela), que o construiu com base nas garantias que é necessário conferir aos cidadãos e nos direitos a promover e a proteger para que as suas preferências sejam efectivamente tidas em conta pelos governantes previamente escolhidos segundo as modalidades sugeridas por Schumpeter.
Dahl observa que este esquema pode ser utilizado para avaliar os processos históricos de democratização e, portanto, para classificar os diversos sistemas políticos, podendo servir igualmente para distinguir duas dimensões: a da contestação em relação às autoridades e a da participação relevante.
Chama-se liberalização ao processo de alargamento das oportunidades de contestação, que conduz os regimes fechados na direcção das oligarquias concorrenciais. Por sua vez, designa-se por inclusão o processo de alargamento das actividades de participação, que origina regimes nos quais todos ou quase todos têm a possibilidade de participar, mas que não são necessariamente concorrenciais, já que o poder continua a ser exercido pela elite dominante.
A democratização deriva da conjugação destes dois processos: liberalização e inclusão. O resultado desta conjugação são os chamados regimes poliárquicos. Dahl designa-os assim, utilizando este termo de origem grega, porque nestes regimes nenhum grupo está em condições de exercer qualquer hegemonia sobre o poder político, já que este se encontra distribuído por toda uma série de detentores.»
Alguns requisitos para a formação das democracias
Para que haja oportunidade de:
I. Formular preferências
Exige-se as seguintes garantias institucionais:
1. Liberdade de formar organizações e de aderir a elas
2. Liberdade de expressão
3. Direito de voto
4. Direito dos dirigentes políticos a concorrerem entre si pelo apoio dos cidadãos
5. Fontes alternativas de informação
Para que haja oportunidade de:
II. Exprimir preferências
Exige-se as seguintes garantias institucionais:
1. Liberdade de formar organizações e de aderir a elas
2. Liberdade de expressão
3. Direito de voto
4. Elegibilidade para cargos públicos
5. Direito dos dirigentes políticos a concorrerem entre si pelo apoio dos cidadãos
6. Fontes alternativas de informação
7. Eleições livres e imparciais
Para que haja oportunidade de:
III. Ver as próprias preferências valorizadas pelo Governo em pé de igualdade com outras
Exige-se as seguintes garantias institucionais:
1. Liberdade de formar organizações e de aderir a elas
2. Liberdade de expressão
3. Direito de voto
4. Elegibilidade para cargos públicos
5. Direito dos dirigentes políticos a concorrerem entre si pelo apoio dos cidadãos
5a. Direito dos dirigentes políticos a concorrerem entre si pelo voto dos cidadãos
6. Fontes alternativas de informação
7. As instituições que produzem políticas governativas dependem do voto e de outras formas de expressão das preferências dos cidadãos.
Fonte: Dahal [1971, p.3]
in Curso de Ciência Política, Gianfranco Pasquino, Caps. 9 e 10 (adaptação)
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